Em 15 de novembro, nossa República completará 136 anos de uma existência marcada por contrastes profundos: nasceu de um golpe militar contra o Império em 1889, encerrando o reinado de Dom Pedro II e inaugurando o que viria a ser conhecido como a República Velha, sob o comando do marechal Deodoro da Fonseca. Apesar de pouco mais de um século de vida, o regime republicano já foi abalado por nove golpes militares consumados, doze tentativas frustradas, vinte e cinco levantes armados e quinze conspirações documentadas, um total de sessenta e um eventos violentos que desafiaram a Constituição, quase sempre orquestrados por militares. Em nenhum desses episódios os autores foram devidamente punidos, o que perpetuou um ciclo de instabilidade e impunidade que ecoa até os dias atuais.
É nesse contexto que a condenação de Jair Bolsonaro e meia dúzia de generais, almirantes e oficiais superiores, proferida nesta semana pelo Supremo Tribunal Federal, assume uma importância histórica singular. Pela primeira vez na trajetória republicana, militares de alto escalão são responsabilizados por rasgar a Constituição, em uma trama golpista que visava subverter o resultado das eleições de 2022. Essa decisão não é mero epílogo de um capítulo recente; representa um divisor de águas, rompendo com a tradição de leniência que blindou os agentes da ditadura militar de 1964 a 1985 — a mais sanguinária e repressiva da nossa história, responsável por 434 mortes e desaparecimentos forçados, além de mais de 20 mil casos de tortura e o exílio de milhares de brasileiros, conforme relatório final da Comissão Nacional da Verdade.
Foi precisamente a ausência de punição aos envolvidos nessa ditadura que manteve viva, nas entranhas das Forças Armadas, uma corrente ideológica extremista, herdeira direta do general Sylvio Frota o radical de 1964 que serviu como ministro do Exército no governo Geisel (1974-1979) e, em 1977, tramou um "golpe dentro do golpe" ao rejeitar o processo de abertura política. O Exército fora compelido a essa distensão não apenas pela crescente força popular, encarnada em campanhas como a da Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, mas também pela perda de apoio dos Estados Unidos, sob o comando do democrata Jimmy Carter, que encerrou a política de intervenções militares na América do Sul para priorizar os direitos humanos. Denominado "abertura lenta, gradual e pacífica", esse movimento pavimentou a transição para a democracia no início dos anos 1980, culminando nas Diretas Já e nas eleições de 1989, que elegeram Fernando Collor como o primeiro presidente após quase três décadas de regime autoritário.
Nesse cenário de resistência à redemocratização, o grupo de Frota optou por sabotar o processo, aspirando não só à perpetuação da ditadura, mas a uma repressão ainda mais feroz, algo que Bolsonaro ecoaria décadas depois, em uma entrevista infame, ao lamentar que "faltou matar uns trinta mil esquerdistas". A tática adotada foi uma série de atentados a bomba, destinados a semear o caos e tornar insustentável o retorno à democracia. Entre eles, destacam-se o explosivo enviado à sede da OAB no Rio de Janeiro, em agosto de 1980, que vitimou a secretária Lydia Monteiro; e a tentativa fracassada durante o show de MPB no Riocentro, em 30 de abril de 1981, que celebrava o Dia do Trabalho com artistas como Beth Carvalho, Chico Buarque, Vinicius de Moraes entre outros... A bomba, destinada ao público, detonou prematuramente no colo dos militares terroristas, matando o sargento Guilherme do Rosário e ferindo o capitão Wilson Machado, um erro grotesco que desmoralizou e expôs o grupo extremista aos olhos da nação e do mundo.
Derrotados por suas próprias falhas grandes grandes mobilizações popular em que conquistamos a anistia e as eleições diretas, os remanescentes dessa linha dura hibernaram nas academias militares, aguardando novas oportunidades. Entre os generais agora condenados, como Walter Braga Netto, Paulo Sérgio Nogueira e o almirante Almir Garnier Santos, destaca-se a figura controversa de Augusto Heleno, que fora ajudante de ordens de Frota nos anos 1970, promotor ds doutrina de que as Forças Armadas transcendem as leis, atuando como guardiãs da pátria, da família e da ordem contra o espectro do comunismo. Heleno personifica esse extremismo: como comandante militar da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah), em 2005, liderou a operação em Cité Soleil que resultou no massacre de dezenas de civis, estimativas variam de centenas de mortos, incluindo mulheres e crianças, em um bairro pobre do Porto Príncipe. Denunciado por organizações de direitos humanos como um "massacre indiscriminado", o episódio manchou a imagem do Brasil, levando a ONU a pressionar por sua remoção do comando, embora ele negasse as acusações de abusos.
Braga Netto, Paulo Sérgio e Garnier seguem a mesma cartilha ideológica, predominante em certos círculos das academias militares: a noção de que o Exército deve intervir na política sempre que o povo ou os civis ousem alterar o status quo, seja ampliando a democracia, implementando políticas sociais reparadoras ou expandindo direitos, como a demarcação de terras indígenas ou cotas raciais, rotulados como "comunismo disfarçado". Essa visão, enraizada na era da ditadura, encontrou em Bolsonaro um arauto contemporâneo, mas o julgamento desta semana construiu uma barreira intransponível contra tal retrocesso.
Assim, além de sua relevância histórica inédita e fundamental, essa sentença configura-se como um bloco monolítico na edificação de nossa jovem e vigorosa democracia — um marco que, com o passar do tempo, revelará camadas profundas de importância política e sociológica. Trata-se, enfim, da primeira punição efetiva a militares por tentativa de golpe de Estado no Brasil, um antídoto tardio, mas vital, contra a herança da impunidade e assim vamos sendo atores e assistentes de nossa própria história em permanente construção.
Gerson Marques